Um vaqueiro vindo do Pernambuco atravessava a Floresta do Araripe. Chegando à Baixa Rasa parou para descansar. Exausto, faminto e fraco, resolveu ali ficar, à espera que alguém passasse e pudesse lhe ajudar, saciando-lhe a fome e a sede. Sua valentia de sertanejo ainda o ajudou a resistir por alguns dias.
O corpo sem forças. O desespero e a agonia já o dominavam quando, mesmo com a vista turva, conseguiu ver um grupo de homens montados em burros, que seguiam em comboio, certamente transportando mercadorias. Tentou gritar, mas sua voz, quase apagada pela tirania da fome e da sede, produziu apenas um fraco sussurro. Não foi ouvido e os homens seguiram seu destino rumo ao Crato.
Repentinamente um dos comboieiros, numa avivada de consciência, disse aos camaradas que lá para trás tinha visto um homem caído bem na beira da rodagem. Resolveram voltar para ajudá-lo, mas ele já havia morrido. Morte silente, testemunhada pelos pássaros e pelas plantas que pareciam chorar diante daquele quadro de desventura. Encontraram-no sobre folhas secas, a cabeça escorada numa raiz de árvore, os olhos abertos ainda reclamando um sopro de misericórdia. Fecharam-lhe os olhos. Libertaram sua alma. Seu corpo foi enterrado ali mesmo, no palco encantado de seu teatro de agonia. Com varas da mata fizeram a cruz que cravaram em sua cova. Isso aconteceu, segundo relatos, nos idos de 1880. Nascia, assim, o mito da Santa Cruz da Baixa Rasa.
O martírio daquele vaqueiro foi divulgado pelo grupo de comboieiros ao povo da região. Tomados pela compaixão e motivados pela forte religiosidade, os moradores dos arredores passaram a frequentar o lugar e rezar por sua alma, a fazer promessas, a suplicar milagres.
São diversas as histórias sobre a origem do mito. Mas o real é que vários milagres são atribuídos à Santa Cruz da Baixa Rasa, dentre eles o atendimento a uma promessa feita por uma senhora, em 1914, quando uma terrível peste espalhou-se por diversos pontos do Nordeste. Ela, com inabalável fé, pediu que a epidemia não chegasse ao Cariri. Foi atendida e o povo da região ficou livre da doença. Essa senhora era conhecida como Vó Pretinha, matriarca da família Estêvão, família que até hoje mantém a tradição de rezar aos pés da Santa Cruz da Baixa Rasa.
Muitas graças foram e são alcançadas e, todo 25 de janeiro, uma grande romaria de devotos acorre ao local, que fica a cerca de 20 quilômetros da cidade do Crato, dentro da Floresta Nacional do Araripe.
Uma clareira aberta no coração da mata virgem. Ventos soprando a ancestralidade de um povo religioso, que ainda tem o privilégio de conviver com a natureza divina, mãe de todas as crenças e mitos e desejos e esperanças. Um oráculo nordestino onde os filhos da terra procuram respostas que lhes livrem da ação implacável da esfinge que a todo tempo lhes apavora com a possibilidade de condenação ao inferno. A Santa Cruz da Baixa Rasa é magia matuta. É a busca incansável da felicidade. É o céu que se insinua aos impuros que buscam a clemência de Deus.
Purgar os pecados, pagar promessas, cantar, rezar pela cura e por querer ser feliz. Aqui, instala-se um ritual misto de sagrado e de profano: missa, devotos, benditos, vaqueiros, bandas cabaçais, reisados, maneiro pau, penitentes, cantadores de viola, políticos de matizes diversos, pesquisadores, curiosos. É o espírito da devoção e da festa, como no princípio, onde o sagrado e o profano eram um só.
(Artigo Baseado em relatos populares – Cacá Araújo é professor, dramaturgo e folclorista, em Crato-CE)
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